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3.2.09
Veja, na íntegra, o depoimento de Sílvia (nome fictício), ex-paciente do médico Roger Abdelmassih publicado pela revista Marie Claire de fevereiro de 2009.


"Casei aos 25 anos e aos 28 ainda não tinha conseguido engravidar. Sempre tive sonho de ser mãe. Uma tia me indicou um médico especialista em fertilização, conhecido da família, dizendo que ele era o papa do assunto e que certamente iria me ajudar. O médico era o famoso Roger Abdelmassih. Dono de uma das mais bem-sucedida clínicas de fertilização de São Paulo. Na primeira consulta, fui acompanhada do meu marido. O dr. Roger foi muito simpático e conversou com a gente sobre vários assuntos. Nossa família é dona de fazendas e falamos bastante tempo sobre isso. Ficou contando vantagens – uma característica famosa do doutor. Fomos muito bem tratados. Ele se deu bem com o meu marido logo de cara. Engatavam longas conversas.
Comecei o tratamento de fertilização sem fazer exame nenhum para ver se era realmente necessário. O dr. Roger viu alguns exames antigos e me disse que eu estava apta a começar o tratamento. Falou para eu parar de sofrer tentando engravidar naturalmente. O procedimento artificial seria mais eficaz. Como eu era jovem, engravidaria num minutinho. Garantiu que ia resolver meu problema muito rápido. Só que não aconteceu bem assim... Foi uma longa trajetória até eu conseguir engravidar. Mas, no início, me empolguei com aquela solução que parecia fácil. Pagamos US$ 15 mil (cerca de R$ 30 mil) por três tentativas de fertilização, em um pacote. Saía mais barato comprar o pacote do que pagar por tentativa isolada (como se desse para vender filho em pacote...). Cada [tentativa] sozinha custava uns US$ 7 mil (algo em torno de R$ 15 mil). O tal pacote era uma jogada de marketing da clínica, criticada por outros médicos sérios com os quais me consultei depois. Há 15 anos, a chance de engravidar em uma fertilização era de 30%. Só que esse é um cálculo tosco, como o tempo provou mais tarde. Era uma liquidação de filhos. Aceitei fazer o tratamento.
Morávamos no interior do estado de São Paulo. Assim como na minha primeira consulta, meu marido me acompanhou em visitas mais importantes, como nas tentativas de fertilização e nos exames de sangue que revelariam o sucesso ou o fracasso da fecundação. Outras vezes, fui à clínica desacompanhada. Precisava tomar doloridas injeções de hormônio para induzir uma espécie de menopausa e fazer exames de sangue para checar a eficiência delas. Essa primeira etapa do tratamento durou cerca de uma semana. Depois, tomei mais injeções doloridas para estimular a produção de óvulos. Meu ovário era monitorada por exames de sangue e ultrassom. Cerca de dez dias depois, quando os meus 18 óvulos estavam maduros, passei por um procedimento cirúrgico. Fui sedada e o dr. Roger os aspirou.
No começo não percebia nada diferente ou estranho. O dr. Roger sempre era atencioso e me tratava bem. Com o passar do tempo, ele foi se tornando mais íntimo. Todas as vezes em que ia à clínica ele dizia que eu estava linda, ficava me galanteando. Tenho um porte atlético, pratico exercícios, não tenho celulite e estou sempre bronzeada. Me considero uma mulher bonita. Ele também entrava na sala em que eu fazia os exames de ultrassom, com outro médico, e pegava na minha mão quando eu estava deitada na maca. Fazia elogios na frente dos outros. Eu também não esperava para ser atendida na sala de espera com outros pacientes. Ficava sentada em uma sala de reunião. Às vezes, sozinha. Em outras, ele vinha conversar comigo. Outras vezes me chamava para tomar um café. Quando eu ia embora, ele sempre me dava um abraço de urso – longo e apertado – e um beijo babado no rosto.
Percebia que ele me tratava diferente das outras pacientes. Mas achava que essa deferência vinha do fato de a minha família ser conhecida da dele. Uma vez, uma amiga que me acompanhou em uma visita me disse que não gostava do jeito pegajoso dele. Depois que nos despedimos daquele jeito, ela disse que ele estava dando em cima de mim. No fundo, também achava que aquela era uma maneira um pouco esquisita de tratar uma paciente, mas não via maldade. Achava que ele era um bom profissional. Além disso, o dr. Roger era um senhor e eu era uma jovem. Encarava tudo aquilo como se fosse o jeito de um tio tratar uma sobrinha.
Comecei a fazer as fertilizações na clínica. Sentia muita dor durante a colocação dos óvulos fecundados no meu útero. Na primeira vez, reclamei. Ele disse que eu estava sendo mole e tascou a sonda em mim. Falou que era assim mesmo, que eu tinha de aguentar. Mas não fiquei grávida desta vez. Na segunda tentativa de fecundação, não foi só a dor que me incomodou. Eu estava deitada na maca, em posição ginecológica, com as pernas para o alto, e ele começou a pôr os óvulos fecundados no meu útero dentro do centro cirúrgico. Ele estava sentado no pé de minha maca e usava um aparelho que abre o colo do útero por dentro da vagina. Minhas pernas estavam cobertas por camisola. De repente, senti que ele estava passando as mãos nas minhas coxas. De dentro para fora. Deu uma alisada mesmo, com as duas mãos. Até tinha uma assistente na sala naquele momento, mas não estava olhando.
Achei estranho, me senti desconfortável, e não entendi direito o que tinha acontecido. Fez isso mais algumas vezes durante aquele procedimento. Achei que era sem querer. Demorei para acreditar que aquilo era um assédio. Continuei acreditando no seu profissionalismo. O dr. Roger agiu como se nada tivesse acontecido e disse que estava tudo terminado, que eu deveria voltar dali a alguns dias para ver se a fertilização havia dado certo. Fui para casa e procurei não pensar naquilo nos dias que se seguiram. Na terceira tentativa fiquei receosa, mas tudo correu normalmente, apesar da dor.
Não engravidei no pacote do dr. Roger e decidi que não iria mais fazer tratamento de fertilização. Estava frustrada, e os procedimentos tinham sido muito doloridos. Sempre que eu recebia a notícia de que não estava grávida entrava em depressão. Chorava por vários dias seguidos, me sentia a última das mulheres. Me perguntava por que aquilo estava acontecendo comigo. Achava que nunca ia conseguir realizar o sonho que desejava tanto. Tinha vontade de morrer. Depois de alguns meses, me prometia que não me submeteria a outro tratamento desgastante. Conversava com o meu marido e decidíamos aproveitar a vida a dois.
Com tudo isso, naquele momento existia outro incômodo. Não contei para ninguém o que aconteceu durante a segunda tentativa de fecundação. Ainda tinha dúvidas se dele de fato tinha me assediado. De qualquer forma, fiquei bem fragilizada. A única certeza que tinha era de ter enjoado do dr. Roger. Não queria mais vê-lo na minha frente. Ele era muito pegajoso.
Passados o cansaço e o desgaste das primeiras fertilizações, me animei a tentar engravidar novamente. Depois de alguns meses, procurei outro médico. Foi esse segundo profissional que eu tinha alguns problemas que precisavam ser tratados antes de fazer a fertilização – informação que o dr. Roger não sabia ou ignorou. Quando fui fazer a colocação dos óvulos, o médico me sedou. Acordei com ele dizendo que não podia realizar o procedimento. Falou que o colo do meu útero era muito estreito. Perguntou se eu dava autorização para alargar um pouco a passagem com uma cirurgia. Daí em diante, a colocação dos óvulos sempre foi feita sob sedação. Fizemos mais três tentativas com o segundo médico, e elas também não deram certo.
Meu marido queria voltar à clínica do dr. Roger. Quando pensava nessa possibilidade, sentia um mal-estar, mas achava que estava implicando com o médico. Topei, porque afinal ele era considerado o melhor em sua área. Na consulta, disse que só faria o tratamento sob sedação. As duas primeiras tentativas foram frustradas. Não sei se ele me assediou, não vi se ele deu aquelas passadas de mão porque estava sedada. Foi na terceira tentativa que aconteceu o pior... Depois da transferência de óvulos, fui deslocada para um dos dois quartos da clínica dele, ainda sedada. Estava nua, vestida apenas com uma camisola cirúrgica. Quando acordei, o dr. Roger estava segurando a minha mão. Vestido de camisa, gravata e o jaleco branco, ele se inclinou sobre a cama e me deu um beijo na boca, tipo um selinho. Eu ainda estava zonza. Senti apenas aquele bigodão horroroso encostando no meu rosto. Empurrei sua mão e perguntei o que ele estava fazendo. Disse para pare com aquilo. Pedi pelo amor de Deus. Ele disse que estava loucamente apaixonado por mim. Me perguntou o que poder fazer com o que estava sentindo. Eu só dizia para ele parar.
Meu marido estava do lado de fora da sala. O dr. Roger saiu rapidamente do quarto, como se nada tivesse acontecido. Até hoje me vem à memória aquela cara de cínico. Antes de sair pela porta, olhou para trás e deu uma risadinha de conquistador. O clichê do cafajeste. Aquilo me deu um mal-estar, uma coisa horrorosa. Foi aí que caiu a minha ficha: o que aconteceu antes não tinha sido uma alucinação criada pela minha cabeça. Fiquei pensando como tinha sido bobinha todo aquele tempo. Mas não contei nada para ninguém, nem para o meu marido.
Ficava me questionando se eu tinha dado trela para ele em algum momento. Se tinha sido simpática demais, se dei a entender algo que, na verdade, não queria. Sentia culpa e vergonha e ficava muito constrangida com aquelas lembranças. Voltamos à clínica depois de 12 dias para saber se eu tinha engravidado. Mais uma vez o tratamento do dr. Roger deu errado. Eu disse que não queria mais tentar engravidar. Ele nos pediu para não resistir. Disse que faria de graça quantas fertilizações fossem necessárias até eu engravidar. Se desse certo, acertaríamos o valor depois. Neguei. Meu marido não entendeu o motivo de minha recusa. Disse que eu tinha pegado implicância com o dr. Roger, que eu o achava mau caráter, mas não entrei em detalhes. De qualquer forma, ele sabe que eu jamais daria em cima de alguém.
Depois de muitas tentativas em vão para engravidar e de viver um assédio, tive síndrome de pânico. Durante as crises, suava frio, tremia e sentia as mãos e a boca adormecerem. Acha que ia morrer. Foram várias crises seguidas. Tomei remédio controlado por um ano. Me sentia usado e desrespeitada. Peguei pavor de fazer outro tratamento. Uma vez, fiquei sabendo que o dr. Roger faria uma palestra na cidade em que eu morava. Fiquei arrepiada só de pensar na possibilidade de ver aquele homem em minha frente de novo. Fiquei com nojo e horror.
Só contei o que aconteceu na clínica do dr. Roger para o meu marido quando começaram a aparecer denúncias de outras moças assediadas por ele. Estávamos lendo o jornal de manhã quando ele comentou a notícia. Descreveu cenas idênticas de assédio às que tinha acontecido comigo dentro daquela clínica. Tive um ataque de choro e aquele sentimento ruim voltou. Disse ao meu marido que ele tinha feito tudo aquilo comigo. Ele foi muito compreensível. Vai me ajudar a procurar um advogado para fazer uma denúncia de assédio. Tinha medo de que as pessoas pensassem que eu estava com dor-de-cotovelo, que só estava falando mal dele porque não tinha conseguido engravidar. Ele era rico e famoso e eu não era ninguém. Passaria por louca. Quando comecei a fazer o tratamento, há 15 anos, nem todo mundo falava que se submetia à fertilização. Muitos casais faziam no sigilo. Esse procedimento não era tão aceito como hoje. Só contei o que aconteceu para algumas poucas mulheres que vieram pedir minha opinião sobre o dr. Roger. Muitas delas não acreditavam. Uma parente próxima achou que eu estava mentindo e fez um tratamento com ele. Felizmente, não aconteceu nada com ela.
Depois do dr. Roger, encontrei um médico sério. Ao todo foram 13 tentativas até conseguir finalmente engravidar da minha filha, que hoje tem sete anos. Foram nove anos de trabalho, e a maioria do tempo nas mãos do ‘excelentíssimo’ dr. Roger. Foram anos perdidos. Nos próximos dias vou para São Paulo prestar depoimento e me aliar às mulheres que tiveram coragem de denunciar os abusos. Ela ainda dizendo por aí que nem sabe se essas pessoas que o acusam foram suas pacientes. Que estão fazendo uma campanha de difamação contra ele. Mas tenho todos os documentos que provam que passei pela clínica. O que ele fez comigo e com outras pacientes é imperdoável."

(Depoimento à jornalista Maria Laura Neves)
link do postPor anjoseguerreiros, às 09:57  comentar

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colaboradores: carmen e maria celia

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