Denúncias como essa não abalam Kunath. Para o dono da boate, não há nada de ilegal na contratação das garotas, já que elas assinam um documento concordando com seus métodos de trabalho. Assinam, realmente, mas muitas vezes sob coação, cercadas de seguranças truculentos. E o contrato de quatro páginas oferecido por Kunath - cheio de erros grosseiros de português - é um atentado aos mais elementares princípios dos direitos humanos. As mulheres são proibidas de tudo e ele passa a controlar suas vidas.
Passam a pagar à boate a alimentação (US$ 20 ao dia) e a moradia (US$ 13 por semana). Cumprem exigências absurdas, como não frequentar lugares onde existam brasileiros, sob pena de multa. Se ficarem grávidas ou adquirirem alguma doença venérea, Kunath aplica mais multas, com valores definidos a seu critério. Até por ficarem menstruadas, as mulheres podem ser penalizadas. "A gente tem que descer e atender os clientes, além de pagar as diárias", relata Marina, 28 anos. Por isso, a maioria esconde a menstruação com a ajuda de absorventes internos.
Com tantas imposições, quem cometer muitas transgressões dificilmente se libertará das boates surinamesas, tal o acúmulo de dívidas. "Kunath estava exigindo US$ 1,5 mil para me liberar", relata a ex-professora Regina Alves, 26 anos, de Icoaraci (PA), fugitiva da boa-te há 15 dias. "Eu não paguei e agora tento voltar para o Brasil."
Para realizar algumas entrevistas, ISTOÉ chegou a reembolsar o valor de multas que as garotas precisavam honrar por se ausentarem momentaneamente do trabalho: US$ 35, na boate Manila, e US$ 47 na Diamond.
O regime de escravidão parece não assustar quem está de fora. Quatro vezes por semana, quando saem os vôos de Belém a Paramaribo, a movimentação pelo saguão do aeroporto Val de Cans chama a atenção. Dezenas de garotas se aglomeram em frente ao balcão da Surinan Airways, enquanto seus agenciadores apresentam os passaportes para o check-in. Dali em diante, elas só vêem o documento de novo quando quitam as despesas da viagem.
Algumas embarcam acreditando em falsas promessas de trabalho. Uma delas, a enfermeira Sônia, 30 anos, chegou a Paramaribo certa de que trabalharia em um hospital, com salário de US$ 5 mil ao mês. Quando percebeu o que se passava, pediu à família no Brasil dinheiro para pagar sua liberdade.
Iludidas, duas modelos de Goiânia viajaram imaginando que fariam desfiles de moda. Foram salvas por um pastor brasileiro da igreja pentecostal Deus É Amor, que ofertou o dinheiro para pagar o que deviam. "Eu pensei que iria trabalhar numa lanchonete na Holanda. Quando cheguei e vi as luzes da boate fiquei apavorada", relata Valéria Guerra, 26 anos, de Belém, que fala inglês e preparava-se para prestar vestibular para jornalismo na Universidade Federal do Pará, em 1993, quando viajou ao Suriname. "Fui enganada. Quem me levou foi uma japonesa de Belém, chamada Solange." Valéria, no entanto, acabou se prostituindo. Primeiro no Suriname, depois na Holanda.
Ao voltar para Paramaribo, foi colocada na rua só com a roupa do corpo depois de brigar com Kunath. Passou a cozinhar para brasileiros no garimpo de La Pabiqi, a uma hora de vôo de Paramaribo. Agora, casada, trabalha com vendas. "Paguei US$ 800 para ter meu passaporte de volta", relata.
As brasileiras em Paramaribo têm perfis distintos. Algumas são sonhadoras e foram ludibriadas. Outras não mediram as consequências da aventura e depois se arrependeram. Há também aquelas que sabiam o tipo de vida que levariam, mas pensavam apenas na recompensa financeira. "Não vim por necessidade. Sabia que rolariam programas, mas queria viajar e achei que valeria a pena", diz, cabisbaixa, a ex-professora Regina.
Drogas e agressões são comuns entre as garotas. Na porta da Diamond, que tem 50 quartos nos fundos, traficantes vendem abertamente papelotes de crack a US$ 12. Há dois meses, Regiane Rodrigues, 20 anos, conhecida como "Madonna", acabou expulsa da Diamond às 4h da manhã, só de calcinha. Estava drogada. Depois de vagar durante dias por garimpos surinameses, ela foi socorrida pela mãe, que saiu do Pará para buscá-la. Dois anos antes, Regiane havia feito sucesso em viagem para Holanda e Alemanha. Sua família guarda, com orgulho, um álbum de fotografias feitas na Europa. "Ela ainda vai ser modelo", sonha, na periferia de Belém, a mãe de Regiane, Marina.
As maiores queixas de maus-tratos em boates ocorrem na Manila. O dono da casa, um filipino chamado Ricky, é acusado de espancar brasileiras. É a casa noturna em pior estado de conservação. Os quartos onde as garotas moram e fazem os programas são imundos. As mulheres do Suriname também costumam ser usadas para transportar drogas para a Europa. Beatriz, 28 anos, que viajou para a Holanda no ano passado, conta que, ao chegar a Amsterdã, estranhou o peso de sua mala. "Estava lotada de cocaína. Deixei a mala na esteira do aeroporto e nunca soube quem foi o responsável por aquilo."
Também na Holanda, há três anos, a ex-estudante Valéria Guerra viu uma colega ser detida. "Meninas usadas pelos traficantes estão presas lá." Quando os chefões do tráfico de mulheres na Europa vêm ao Suriname, festinhas de embalo são promovidas em quartos de hotéis de luxo em Paramaribo. Nessas festas, a cocaína é servida em bandejas.
Antes de terminar a etapa do Suriname, as garotas são avaliadas para prosseguir carreira na Europa. Representantes de casas de prostituição na Holanda - duas delas conhecidas como Mammy Claudete e Mammy Lilian - viajam a Paramaribo para conferir as qualidades de suas contratadas. A primeira orientação dada às garotas é tirar a roupa. Depois, com ajuda de um boneco inflável, elas aprendem técnicas de massagem erótica. Recebem ainda aulas sobre o manuseio de chicotes, algemas e outros apetrechos sadomasoquistas. Só as bem-sucedidas nos testes vão para os clubes holandeses. As restantes ficam em casas fechadas.
Todas ganham no corpo um número tatuado, para facilitar a identificação. Na Diamond, antes de partir para a Europa, as brasileiras são homenageadas pelas colegas. Elas dançam, tomam banho de champanhe e tiram fotografias. Quando chegam à Holanda, trabalham em casas como a House Cherida, que tem sedes nas cidades de Haia e Eindhover. Lá, cada programa de uma hora custa US$ 125.
Dinheiro, é fato, muitas conseguem. Isso tem feito aumentar cada vez mais o tráfico de mulheres. Sem amparo, essas garotas ficam à mercê da própria sorte. "No Suriname, elas vivem num regime de escravidão. Mas não dá para oferecer passagens de volta para todas", argumenta o embaixador do Brasil no país, Roberto de Abreu Cruz. "Procuramos resolver os casos que chegam. Mas chegam poucos." As garotas brasileiras, em contrapartida, criticam a omissão da embaixada. Para a Polícia Federal, o tráfico de mulheres dificilmente será evitado se não houver controle da entrada e saída de brasileiros para o Exterior. "Isso existia até o governo Collor, mas terminou por algum motivo estranho", reclama o delegado José Sales.
Em Belém, ISTOÉ procurou algumas das acusadas de envolvimento no tráfico de mulheres. Maria Alves de Oliveira, 58 anos, a "Maria Batalhão", dona do bar Lírio de Maio, no bairro do Condor - uma das áreas mais miseráveis de Belém -, é acusada de aliciar garotas em boates. Ela negou. "Se eu ganhasse dinheiro com isso, não moraria nesse lugar." Outra, Genésia Rodrigues, foi procurada em casa, em Nova Marambaia, periferia de Belém, mas, coincidentemente, havia viajado para o Suriname. "Para vender roupas", apressou-se em justificar seu marido, José Rangel.
GILBERTO NASCIMENTO E ALAN RODRIGUES (FOTOS), DE PARAMARIBO
Via Goiânia
A mais nova rota de tráfico de mulheres brasileiras para o Exterior interliga Goiânia a Tel Aviv, em Israel. Na quinta-feira 30, a Polícia Federal impediu o embarque de oito prostitutas ao prender três agenciadoras. As 11 mulheres foram presas em flagrante num hotel no centro da capital goiana, momentos antes de seguirem para o aeroporto. Com promessa de receber R$ 250 por programa, as mulheres iriam deixar o País como turistas. A falsa excursão teria escalas em Roma e no Egito.
"Elas nos disseram que não tinham nada a ver com tráfico e nos prometeram muito dinheiro", afirma Márcia Mendes, 25 anos, que esperava faturar R$ 23 mil em oito meses. "Todas nós sabíamos que o trabalho era prostituição, ninguém foi enganada", completa. As agenciadoras financiaram todas as despesas do grupo. Antes de descobrir o novo destino, a polícia já tinha conhecimento das rotas de tráfico de mulheres de Goiás para a Espanha, do Pará para o Suriname e do Rio de Janeiro e São Paulo para vários países da Europa.
Mino Pedrosa
fonte:http://www.terra.com.br/istoe/capa/139219.htm